sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O palhaço e a polícia

      Ontem fui abordado por policiais militares que acompanhavam um bloco carnavalesco na Av. Afonso Pena de Belo Horizonte – MG. Único motivo, pasmem: ESTAR USANDO A CAMISA DO CORINGA!

      Chegaram a três, dois deles maiores do que eu. O menor aproxima bem perto de mim e já diz, sem o menor pudor: Tira essa camisa e coloca do avesso”. (Isso mesmo, sem acrescentar uma palavra. Olha o nível!). Eu não entendendo direito e não acreditando no absurdo que tinha ouvido, disse: como? Por quê?”. No que ele responde: o palhaço é uma afronta ao policial, você tem alguma tatuagem também?”. Eu retruco: isso não é um mero palhaço, é um personagem de quadrinhos, o Coringa”. Já me cortando, ele diz: não me interessa, para mim isso é um palhaço”. Eu não vejo assim”, respondo. Na hora, com eles te cercando, a adrenalina vai a mil e você até perde boa parte da sua linha de raciocínio, pois não interessava se era um palhaço ou se era qualquer outra coisa (desde que não seja uma indiscutível apologia e/ou incitação ao crime, obviamente), não deveria se quer ter argumentado sobre a ignorância dele em relação à peculiaridade que é um personagem específico. Bom, finalmente eu disse: olha, eu não vou virar a camisa e ficar andando como um molambo porque você quer”. Nisso um dos grandões chega gritando: me passa seu documento! Você tem passagem?”. Eu tirei, entreguei e ele quebrou a cara. Então ele disse, a seguir: estamos só fazendo nosso trabalho, temos o direito de te abordar”. Eu respondi: ok, você tem o direito de me abordar e pedir o documento, mas não de me mandar virar a camisa do avesso”. Ele, já quase vindo para cima de mim, responde: você quer me ensinar a fazer meu trabalho?”. Eu respondo: não vou discutir com você, você escolhe quem abordar, e eu não estou negando isso, mas pedir documento e revistar é uma coisa, o que vocês estão pedindo é outra”. E ele continua: eu sou formado, você conhece direito, você estudou?”. (O cara se achando o pica das galáxias por ser um policial supostamente formado em Direito). Eu digo: conheço muito, cara, sei de trás para frente e também sou formado, mestre em Filosofia, mas isso nem vem ao caso”. Aí, ele começa a tentar se explicar: estamos pedindo isso porque se você ficar usando ela assim, vai ser abordado toda hora, se você conhecesse um policial de perto, saberia bem do que estou falando”. (Sim, o sujeito já julgou do nada que eu não tinha proximidade alguma com policiais). Outra coisa que nem compensava ter dito, mas, na hora, soltei quase que instintivamente: bom, eu não sei o que você está dizendo, mas meu pai e meu avô foram policiais, eles não agiam assim”. Ele tinha dado uns passos para trás, após eu dizer isso, volta enfurecido: você conhece o nosso treinamento? Já esteve lá dentro? Sabe o que esses caras que usam palhaço fazem? Eu não sei se você está usando com essa intenção, mas teve gente que já morreu por isso!”. Olha o nível do treinamento da turminha! (Só depois que tive a devida clareza que na última frase dele estava me fazendo uma ameaça velada). Eu já com o sangue quente, respondo: bom, se vocês são treinados para se preocuparem com alguém que simplesmente está com uma camisa de ‘palhaço’, eu vou te contar, viu! Aqui com certeza está acontecendo um monte de crimes e vocês perdendo tempo com uma camisa!”. Por incrível que pareça, ele abaixa o tom de voz e diz: você está no seu direito, quer ficar com ela assim, fica, mas estamos avisando”. Eu respondi: bom, essa é a sua opinião, eu tenho outra, e se vocês quiserem me abordar, ok”. Nisso chega um quarto “elemento” (como eles gostam de falar) fardado – o terceiro, o outro grandão que estava acompanhando desde o início, nada disse –, e sem nem saber o que estava acontecendo repete, como um papagaio: que contato que você tem com a polícia? Por acaso sabe o que eles ensinam para a gente no treinamento?”. Respondo, por fim: Eu não sei se você ouviu, mas eu disse que meu pai e meu avô foram policiais, eu conheço a polícia e suas dependências bem de perto, mas eu não tenho mais nada a dizer não, meu caro, boa noite”. Ele responde de forma robótica, indo atrás dos outros que já estavam saindo: você não entende nada”.

      Cheguei ao local já no fim do evento, após a minha abordagem, já havia quase que mais policiais que gente, eles estavam fazendo aquelas rondas “toque de recolhida”, fiz questão de continuar com a camisa passeando entre eles. Sei que era arriscado, mas eu estava tão puto que dei umas quatro voltas ainda entre eles, questão de honra, se mais um chegasse a mim mandando virar a camisa eu iria dar voz de prisão nele, por abuso de autoridade – sei que não daria em nada, perderia tempo mofando em uma companhia de polícia para abrir um B.O. inútil, isso na melhor das hipóteses, pois, sabe-se lá qual seria a reação dele, seria uma exceção inominável se ele acatasse, claro, é infinitamente mais provável o contrário, e ainda com uso de extrema violência e agressões diversas, como temos visto, convenhamos, mas eu estava disposto a pagar pra ver. Teve uma hora que passei por aqueles que me abordaram, os ouvi de soslaio, dizendo: “o folgado ainda está desfilando”. Os caras chamam de “folgado” aqueles que se recusam a obedecer a seus mandos abusivos. De fato, não há conversa com fascistas. Eles não sabem o que é diálogo.

      No curto tempo que estive lá, os vi abordando várias pessoas, sempre jovens negros e pobres. Vi um deles tomar a latinha de tíner que um dos moleques estava cheirando, pisarem nela e mandar o garoto sumir da frente deles. (Queria os ver fazer isso com os filhos dos bacanas nas áreas nobres da cidade, tomar o cigarro de maconha desses playboys, pisar em cima e mandar desaparecer da frente dele aos empurrões, mas enfim, usuário pobre é traficante, até de tíner, que não é crime). Vi uma que foi um verdadeiro “cala a boca”: uns dez jovens, homens e mulheres, estavam indo embora cantando, eles colaram no grupo, mas eles continuaram a cantar, aí um dos policiais deu um berro: “todo mundo pra parede, porra!” – eles ficaram lá, naquela posição vexatória com as mãos na cabeça até quase na hora que saí, depois, os jovens foram embora calados e cabisbaixos. Por fim, começaram a rodar com as viaturas e as motos no meio do povo e a expulsar os vendedores ambulantes da rua.

      Pois é, que situação! Os caras não têm nem receio de afirmar que o treinamento deles é pautado por coisas desse tipo, tão ridículas e insignificantes. Eles veem o símbolo do palhaço como um touro vê a bandeira vermelha flamejante. Treinados para intimidar o cidadão e para cometerem abusos de autoridade como se fosse a coisa mais normal do mundo, em uma palavra, treinados para eliminar o suposto "inimigo", para a guerra, que não existe. Por essas e várias outras, a Polícia Militar tem que acabar! Não dá mais! Não há espaço para militarismo em meio à sociedade atual. É preciso uma polícia que não se julga acima do cidadão e que respeita as leis, ao invés de criá-las, a bel prazer. Esse caso é mais uma das provas que não se trata de um “caso isolado”, eles disseram que são treinados para agir de tal forma com quem tem a figura de um palhaço. Mesmo que o símbolo do palhaço represente criminosos associados à morte de policiais, como todos sabem, eles não podem fazer nada em relação a isso, mesmo se o sujeito tatuar tal de todo o tamanho com esse objetivo. Isso é mais do que despreparo, é não ter condições mínimas para sair às ruas. Há um vídeo conhecido de um policial torturando um rapaz, raspando a tatuagem de palhaço dele com uma faca, esse é o ponto que pode chegar alguém que é treinado para agir como um cão-de-guarda, obedecendo cegamente um comando. E quanto ao “apelido”, só pegou como pegou por eles agirem assim. A mamãe não ensinou que a melhor forma de não deixar o apelido pegar é não ligar para o que o coleguinha diz.

      Antes que alguém argumente, já me antecipo na réplica, é claro que há exceções, sempre há, até no Inferno há. Certamente existe aquele policial que, mesmo ouvindo tudo o que seus colegas e superiores dizem sobre a figura do palhaço, não será estúpido o bastante para ficar abordando até quem está vestido de palhaço. Mas o problema aqui é o comprometimento, o fascismo explícito, o autoritarismo absurdo, que surge no próprio treinamento, os condicionando a fazer o que fizeram no meu caso (mesmo na eventualidade de nem todos seguirem). Que, por sinal, como a gente vê dia após dia, poderia ter sido muito pior, poderia estar machucado agora ou mesmo morto, por não ter seguido as ordens abusivas deles, e provavelmente você que os defende a qualquer preço estaria numa hora dessas convicto, falando sem mais: “bem feito, bandido bom é bandido morto”. Mais uma vez, a única solução para a Polícia Militar, nos moldes atuais, é o seu fim.

      #ForaPMerda #DesmilitarizaçãoJá

Ps: Link do texto onde faço um breve resumo do que é a desmilitarização: “Desmilitarização já!”.

2 comentários:

  1. Nossa Moisés, fiquei até assustada com seu depoimento. Talvez eu não perceba essas atitudes por ser mulher, eles agem diferente. se fosse eu cm a blusa do coringa provavelmente não teriam dito nada. Infelizmente, pelo que diz no seu depoimento, eles são treinados a combater pessoas com camisa ou tatuagem de coringa. Ae fica a questão né, treinados a combater ou treinados a temer quem apresenta um coringa? Thata http://cafecomtrufa.blogspot.com.br/

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