segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O mundo não tem sentido. E agora?

       “Desceu sobre nós a mais profunda e a mais mortal das secas dos séculos – a do conhecimento íntimo da vacuidade de todos os esforços e da vaidade de todos os propósitos”. (FERNANDO PESSOA. Livro do Barão de Teive – Educação do Estoico. Livro(s) do desassossego, § 7).

       O mundo não tem sentido sensível, e salvo para os místicos, aqueles que dizem ter contato direto com o sobrenatural (não os depreciando, só não tenho razões para crer como eles ou na literalidade dos relatos deles, mesmo sabendo que muitos são sinceros), o sensível é tudo o que temos. Não há como racionalmente fugir disso. O sentido fora do sensível é possível, mas como diz Albert Camus no livro O Mito de Sísifo, todo “sentido” que nos ultrapassa, isto é, que supostamente estaria fora do mundo vivido, é mera questão de fé, uma apelação, um “salto no vazio” – expressão de Kierkegaard, reconhecido filósofo citado pelo autor, outro a trazer, de maneira mais profunda e sem volta, a falta de sentido. O mistério que o mundo apresenta, a nossa ignorância e ao mesmo tempo a nossa bela capacidade de pensamento, que se reconhece ignorante, que soa muito aquém do fim miserável que constatamos, e o fato de todas as hipóteses metafísicas serem logicamente possíveis, não são capazes de nos dar qualquer sentido concreto. A possibilidade, a interrogação, não fazem um sentido real.

       Se tudo é contingente (indico a leitura do A Náusea de Jean-Paul Sartre para vivenciar essa questão – a palavra é essa mesmo, vivenciar, pois o livro provoca esse sentimento), se não há razão visível para a existência individual e para a existência da humanidade – e ainda, no eterno repetir das coisas, dos problemas humanos, em nossa mais palpável fragilidade, isto é, podemos morrer a qualquer momento, como uma peça de teatro que pode terminar antes do fim, sem explicação, de repente, caindo no esquecimento com ou sem “tarefa cumprida” (se é que isso existe), como ilustra Heidegger em Ser e Tempo, movido pela magnífica obra de Tolstói, A Morte de Ivan Ilitch –, que diferença fará? Se isso ou aquilo conseguirmos, se isso ou aquilo formos ou não, o que importa ao fim e ao cabo?

       (Informo que esse não é um texto de discussão técnica, quem não tem contato com a filosofia pode continuar a leitura tranquilamente. Cito filósofos sim, pois estou sempre na companhia deles, são gigantes para nos ajudar a pensar, mas não se trata de citações que só iniciados podem compreender. O texto é para todos.).

       Recentemente fiquei sabendo que um amigo, Helder Skelter, como ele gostava de ser chamado, se matou (foto do texto em homenagem a ele). Triste. Lembro como se fosse ontem da nossa última conversa, sobre a desigualdade social e a “vida de aparências”. Ele havia sumido, não estávamos trombando nos lugares que a gente frequentava, ele não postava nada na internet, tentei ligar um dia e deu fora de área. Só fiquei sabendo muito tempo depois, quando encontrei com um dos nossos amigos em comum (que também não ficou sabendo na época). Ele publicou um texto no seu blog, “Se estou deprimido”, na ocasião eu apenas havia passado o olho, mas deu para notar que se tratava de uma fase muito ruim na vida dele; depois, relendo agora na íntegra, era literalmente uma carta de despedida. Ele começa o texto assim: “Hoje eu sou aquele inseto de carapaça pra baixo, agitando as pernas, perdido”. Eram muitos problemas e dificuldades, mas a falta de grana, no caso dele, foi determinante. Dinheiro aliviaria alguns males, faria ao menos esperar um pouco as coisas melhorarem, de forma que é sim mais uma perda para se colocar na conta desse sistema capitalista cruel e inútil (obviamente não estou falando que dinheiro é solução para nossos males – pelo contrário, prego o fim dele –, mas é um mal necessário para manter-se vivo enquanto existir esse sistema doentio; obviamente também não estou dizendo que quem tem grana não se mata). Se você leu o texto dele, percebe que era um grande crítico dos valores da sociedade atual; não tenho pretensão de resumir seu pensamento, até porque possivelmente ele acharia tal tarefa patética, mas o caso dele evidencia como é destrutivo esse caminho que estamos tomando enquanto humanidade, tirando tudo de quem já não tem mais nada. Legitimamos um modelo de vida esmagador, fundamentado na ilusão. A vida tem preço em cifrões nesse modo insano de existir que estamos mergulhados.

       Dizia meu autor preferido de literatura, Dostoiévski: "E as pessoas abanam a cabeça e murmuram: 'Como os anos passam depressa!'. E perguntam ainda: 'Que fizeste durante esse tempo? Chegaste realmente a viver ou não?'. 'Olha', dizemos para nós mesmos, 'repara que frio faz neste mundo. Basta que passem mais uns anos para que chegue a espantosa solidão, a trêmula velhice que traz consigo a tristeza e a dor. O teu mundo fantástico há de perder então as suas cores, murcharão e morrerão os teus sonhos, e, como as folhas amarelas que tombam das árvores, também eles se desprenderão de ti...' Ó Nástienhka! Que tristeza então vermo-nos sozinhos, completamente sozinhos, e não termos de que nos lamentarmos... nem isso, ao menos! Pois tudo aquilo que perdemos nada era, nada mais do que um zero, um simples zero: apenas uma ilusão." (DOSTOIÉVSKI, F. Noites brancas. L&PM, 2008. P. 48). Noves fora, a vida é quanto peso vai se acumulando nas costas. Por isso nosso saudosismo para com os dias da infância. Não é exagero dizer que o resto é maquiagem. Quanto mais se vive, mais se percebe que os belos momentos são de fato raras rosas que nasceram sobre cinzas, quem diz o contrário mente, mente por ignorância, por falta de vivência, por incapacidade de abstração ou por necessidade. O que tem de indivíduos que se pararem um segundo se deprimem sem saber o que fazer é surreal, precisam de “viseira”, da aprovação constante do grupo, típico homo labore, sofre e causa sofrimento por onde passa. Pessoas que trazem paz genuína no olhar são tão escassas que sobressaltam da multidão, do caos... O mundo não é justo. Não há final feliz (sofrimentos indizíveis acontecem em séries; a leitura de Cândido de Voltaire é indispensável, no romance a crítica ao otimismo é sem igual). Crianças e jovens morrem em agonia, monstros vivem e morrem de velhice. Há dor extrema, sofrimento inimaginável, tristeza e, sobretudo, pouca esperança para mesmo amenizar tais males durante a vida; quando acontece algo nesse sentido, trata-se de paliativo. Ainda que você viva cem anos em pleno envolvimento político (a verdade é que dificilmente viverá tanto se for tão ativo, pois provavelmente os opositores conservadores o matarão ou silenciarão antes), não verá muito fruto de suas lutas, se tiver sorte, verá alguns, o que é muito bom, mas serão poucos, principalmente em vista do que sempre resta a alcançar. E se num futuro distante, devido às suas ações ideológicas e de outros que continuaram seu caminho depois, finalmente a humanidade aprender a viver em harmonia e justiça (o que seria louvável e muito bom, de forma que esse é um alvo a se manter para fins práticos), não será o “sentido” que daria razão de fato a isso tudo, a esse mundo contingente, que continuaria sendo dispensável; além disso, essa estabilidade pacífica deveria ser eterna, mas é quase total ficção pensar num mundo em que a humanidade não venha a findar com o tempo, e mesmo os robôs-supercomputadores que poderão guardar nossa cultura e história por mais tempo, que eventualmente poderiam “sobreviver” ao colapso do nosso sistema solar, não sobreviveriam ao colapso do Universo, o chamado Big Crunch, salvo uma tecnologia “divina” que teria de ser desenvolvida com o indizível poder de controlar esse processo inevitável em proporções impensáveis, controle sobre uma distância de aproximadamente 93 bilhões de anos-luz, o que é mais que improvável, mas quase impossível por tudo o que nós conhecemos – só não dizemos ser impossível tendo em vista que não se pode afirmar cabalmente nada em relação ao futuro, só por isso permanece sendo uma hipótese. Em uma palavra, essa utópica tecnologia teria que ter simplesmente o poder de controlar o Universo. Nós, macacos burros que brincamos de ser “inteligentes”, já teríamos ido para o saco há muito tempo, fato. [Antes que alguém objete, digo: sim, se trata de uma teoria, mas isso é tudo o que temos: teorias. Na verdade, não sabemos nada, estamos limitados à condição humana, aos fenômenos, isto é, acessamos a coisa conforme aparece e não a Coisa-em-si, como afirma Kant. Não sabemos nem mesmo quem somos, se existe outros fora da minha mente, se o mundo exterior é ilusão, se existe o Eu (substancial); sintetizando, não temos qualquer ciência de fato. Isso tira ainda mais o chão, pois solapa as pseudo-verdades dadas pelos sentidos, descobre-se portanto, que os sentidos são incapazes de nos dar qualquer conhecimento do que seja a realidade pura, de forma que a última pode ser qualquer coisa]. E mesmo assim, será que a eternidade da forma humana seria um sentido válido? Viver pela “eternidade do pensamento humano”, convenceria alguém? Segundo Homero, no livro A Ilíada, Aquiles foi para a guerra de Tróia sabendo que ele ia morrer, jovem, mas, como consequência, seu nome seria lembrado pela eternidade; depois, no livro A Odisséia, do mesmo autor, vemos Aquiles “arrependido” dizendo que é melhor ser qualquer um entre os vivos do que estar no Hades (mundo dos mortos). Falamos de Aquiles até hoje, mais de três mil anos depois, se ele é mito ou não, aqui não vem ao caso. Mas, pelas razões apresentadas acima, é praticamente impossível que um dia a memória sobre Aquiles não desapareça. Dizia o imperador e filósofo Marco Aurélio: "Tudo é efêmero, inclusive o lembrar e aquilo de que se lembra." (AURÉLIO, M. Meditações. Livro IV, § 35). Já dizia até o escritor bíblico: "Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser, também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois" (Eclesiastes 1: 11). E mesmo que não fosse o caso, será que vale a pena existir para ser uma memória? Encarar tudo o que encaramos para unicamente sermos lembrados? Uma coisa é fato: não estaremos vivos para apreciar essa fama.

    Que cenário apresento, não? Muitos já estão com os ataques infundados ad hominem na ponta da língua contra minha pessoa – que é apenas mais uma forma de fugir ao tema, afinal, ao dizer “esse sujeito deve ser muito infeliz”, e coisas do tipo, para não encarar os argumentos, você está tentando transferir suas misérias, mascarar a sua frágil realidade, que na verdade é a realidade humana, lamento. Mas esse cenário fatalista apresentado aqui já fora constatado por muitos antes de mim, salvo uma coisa ou outra, de certa forma, posso dizer que apenas os reproduzo (corrente de pensamento conhecida como Niilismo).
        Talvez você ache que isso é devaneio de filósofo, mas seja sincero consigo mesmo e analise as coisas como elas são, observe os fatos, o frio apresentar do mundo, verá que não é o caso. Todos nós temos a capacidade de pensar, e como diz Camus, “começar a pensar é começar a ser minado” (CAMUS, A. O Mito de Sísifo. P. 24), basta mirar a questão – guardada as devidas proporções, é similar à escolha da pílula vermelha em Matrix. Se você leu até agora, se manteve os olhos no texto, não obstante a opressão que ele pode eventualmente causar, quer saber mais sobre a questão derradeira, aquela palavra que sua mente pode até ter tentado esquivar ao implicar de alguma maneira a sua pessoa: o suicídio, o fim próprio deliberado. É crucial falar abertamente disso. [Relaxe, se você conhece o autor que vos escreve, não se preocupe, antecipo que não estou planejando matar-me, esse texto não se trata de uma carta de despedida ou qualquer coisa que a valha; assim, também espero que você não se mate ao problematizar o tema em questão – na verdade, concordo com Camus quando ele diz que o suicídio meramente filosófico é coisa rara –, e não digo isso prepotentemente achando que meu texto tem um pica poder, mas porque o tema não permite a indiferença, o tema sim é corrosivo, abalador por natureza. Prova que você, de uma forma ou outra, já pensou sobre ele, só não quis desnudá-lo. Normalmente é um assunto que não se discute de forma aberta, entre amigos, pois cessa com as risadas, constrange, entristece, fere. Quase sempre logo mudamos de assunto. Contudo, dizendo francamente, o efeito dessa análise pode ser mesmo inverso, principalmente se você se encontra em angústia, talvez o ajude a não por um “fim às suas dores”, mas o faça encontrar sua própria maneira autêntica de viver, a lá uma obra de arte (como diz Nietzsche), que não tem sentido, mas que é em si mesma, por si mesma, que vale a pena enquanto durar, sendo o melhor que puder a cada momento, com intensidade, independência, beleza própria e vontade de potência. Afinal, o presente é tudo o que temos.].

       Escrevi um artigo publicado na revista Contextura do Departamento de Filosofia da UFMG (Nº 7 - primeiro semestre de 2015) onde trabalho a questão do suicídio filosófico perante a falta de sentido – isto é, mediante apenas o absurdo do mundo, sem sofrimento físico ou emocional –, o ponto é se a vida vale a pena ser vivida mesmo sem sentido, a conclusão é que sim, intitulado: “Entre Sartre e Camus, se há falta de sentido, devo suicidar?” (Também tenho um vídeo/aula onde trabalho a mesma questão: CRESÇA 13: Morte, Absurdo e Suicídio). Mas não discuti propriamente sobre o suicídio quando o indivíduo tem o intuito de aliviar a dor. A verdade em relação ao último parece óbvia: se alguém sofre intensamente, por que não se matar, se não vê sentido no mundo? A vida com tal dor vale a pena num mundo sem sentido? Vamos ser francos, resposta: não.
       As circunstâncias da morte do Helder foram o “espanto”, como dizia Aristóteles, necessário para filosofar, triste fato que me fez voltar a trabalhar o tema. Pensei muito sobre as ideias que trocamos, livros e filosofias que discutimos, no pequeno tempo que trabalhamos juntos, nos eventos que encontramos, isso remetia a um mesmo ponto: tudo passa, tudo é efêmero e contingente... Se pararmos para pensar, no cômputo final o mundo é dor, dor própria, dor alheia, enfim, o que no fundo aprendemos é somente ignorar a dor, quando ela se faz mais presente, focamos nos bons momentos do passado ou no futuro (que não existe). Segundo um dos filósofos de mais tato para as coisas humanas, Michel de Montaigne, buscamos nos distrair, nos divertir com qualquer coisa, para não encararmos nossa condição miserável. Ao passar do tempo, vemos que acertadamente diz a canção de Vinícius de Moraes: “tristeza não tem fim, felicidade sim” – se a felicidade fosse algo comum, não daríamos o valor que damos para os momentos de tal. Vencer a dor completamente é algo que não está ao nosso alcance. Pois a própria finitude é dor, de tal forma que fingimos ser imortais, inconscientemente até, numa tentativa vã de não aceitar nossa realidade mais íntima, a morte, como diz Heidegger. Por exemplo, acostumamos com o findar das pessoas próximas porque é inevitável, todos morrem, cedo ou tarde, mas não relacionamos isso intrinsecamente ao nosso próprio deixar de existir, que pode ser no próximo segundo, o mesmo vale para as doenças, para o envelhecimento, para a maldade humana, são dores que vamos ignorando “naturalmente”, criamos até falsas esperanças para não olhá-las nos olhos, para não saber que estão presentes a todo o momento (não estou dizendo que a solução seja vivermos aflitos com medo da morte sempre, até porque isso seria paralisante, o ponto é apenas não tamparmos com a peneira essa nossa condição) – o budismo aborda muito bem essa questão: Sidarta Gautama, segundo a lenda, se abateu profundamente ao sair do palácio que o protegia, pois viu esses males de frente, de maneira nua e crua. A existência como um todo, sem as máscaras que colocamos, é consternadora.
        É bizarro o que eu vou dizer, mas uma ida ao cemitério, não para enterrar um ente querido, pois a dor da perda inevitavelmente ofusca esse tipo de percepção, traz alguns sentimentos singulares: silêncio, tudo se resume a silêncio. Tumbas pomposas, outras só com um número em cima, outras nem com número (já nas periferias do cemitério), algumas delas bem pequenas. Covas antigas, novas. Indigentes ou tão bem identificados com menção honrosa, mensagem na lápide e fotos, todos silenciados, todos iguais, como diz o dito popular, “no mesmo buraco”. Jovens, velhos, homens, mulheres, todos como se nunca houvessem existido. O mundo continuando após suas breves existências (seja de um ou cem anos), e assim todos vão passando, ficando para trás, caindo no esquecimento. “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (MACHADO DE ASSIS. Memórias Póstumas de Brás Cubas. § XXVII). Nomes e sobrenomes, datas de nascimento e morte, é isso, não são nada mais do que isso. Somos nós... Nietzsche fala de nossas ilusões, dessa fantasia de acharmos que somos mais do que a natureza mostra, ele rebaixa o conhecimento e a prepotência humana de forma memorável: "Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da 'história universal': mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava: quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele.(NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra moral. §1).

       Talvez então o melhor seja morrer jovem, sem preocupação, depois de um dia agradável, prazeres, boa companhia, risos, festa, uma noite de amor. Toda ação gera algum tipo de consequência dolorosa (se não imediata, de forma direta ou indireta, tudo remete ao fim, à falta de sentido último), por que então vivê-las? Cada escolha, uma renúncia; ganhos e perdas. “Viver é muito perigoso”, repete várias vezes o personagem Riobaldo do Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa. Tudo é como água, na tentativa de segurar, escapa de nossas mãos... Não sei se é nossa maldição ou benção, mas queremos mais, temos um instinto animal, que ruge, que quer viver, que quer ser (não é por acaso que vemos muitos dizendo que não se matam por falta de coragem). Agostinho diz que “a dor de ter perdido não supera a alegria de um dia ter possuído”, sem esses objetivos mesquinhos, fantasiosos e completamente sem sentido de “vencer na vida”, “cidadão modelo, férias na Europa, ter pistolão” (criticado pelo saudoso Renato Russo na música Química) e afins, característicos de quem não quer enxergar a realidade (onde ao fim tudo é vão), talvez seja isso que nos move, esses momentos de alegria que fazem os duros serem suportáveis. Queremos mais do prazer, da afirmação da vida; e como um momento bom e verdadeiro é o melhor dos ópios! [Não estou dizendo que não devemos fazer planos (ou agir de forma inconsequente), tais são inegavelmente válidos para a vida prática, para o bem estar em comunidade, o ponto é que não são capazes de dar o sentido em questão, sempre estaremos buscando um próximo alvo, e um próximo, e um próximo, e assim por diante].
       Camus diz que são três coisas que o mantém vivendo no mundo absurdo: sua revolta, sua liberdade e sua paixão (mesmo sabendo que tais não são capazes de satisfazer qualquer sentido último); concordo com ele, acrescentaria as coisas simples da vida, até porque boa parte do estresse que temos é com bobagens e barreiras invisíveis, criadas pela nossa própria mente para se amoldar ao olhar do outro – não que o outro não seja importante, ele só não pode ser um permanente entrave para tudo o que fizermos, fazendo reverberar a famosa frase de Sartre "o inferno são os outros". Lembro agora do romance “A Culpa é das Estrelas” (alguns spoilers nas sentenças a seguir), ali é representado o sofrimento intenso, a dor da doença e da perda, mostra como o mundo é injusto, a morte prematura, jovens não podendo ser jovens. Mas, mesmo assim, os personagens vivem o tempo que têm da melhor forma possível, da maneira mais intensa, verdadeira, como eles dizem, de forma infinita, independente do “tamanho do seu infinito”. Quando vi eles dizendo isso, lembrei-me desta frase genial de Carlos Drummond de Andrade: “Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundos, mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força jamais o resgata”. Essa disposição talvez seja a busca mais legítima que devemos ter: viver intensamente cada momento. (Intenso aqui não é agitado, mas sim pleno, o simples parar para não fazer nada, respirar tranquilamente, olhar a paisagem, absorto ali, pode ter toda a intensidade do presente). Pois não se engane, sempre haverá “E agora José?” em nossas vidas.

       Sinceramente, salvo se um deus apareceu para você, ou algo similar para confirmar, e tenha lhe revelado a “Verdade” indubitavelmente, provando a existência da vida após a morte, dando-lhe detalhes dos destinos das almas, você não deve ter medo do que as religiões clássicas ou os textos “sagrados” dizem sobre o que acontece com aqueles que se suicidam (quase sempre os condena a torturas escabrosas). Não nego que as crenças religiosas alternativas que não vivem do medo e da ameaça possam ajudar seus fiéis, mas sem a iluminação sobrenatural, são apenas estórias. Fé por fé não é virtude, é ingenuidade. Crer tão somente porque está escrito num livro antigo então, beira à insanidade; estar predisposto a crer em algo já determinado é muito perigoso, é terreno fértil para o “efeito placebo”. Vale ainda ressaltar sempre que poder ser o caso não significa ser de fato, o caso... A famosa aposta de Pascal (“você não tem nada a perder”) é furada não apenas porque se existe um deus ele pode ser qualquer um, isso também, mas, sobretudo porque o cristianismo demanda um modo de viver, que em suma é uma abdicação da vida. Por que apostar a única coisa que você tem em algo que é apenas “possível” como qualquer outra hipótese imaginável? Por que escolher uma? Ora, é evidente que sua escolha pode não ser a correta! Sempre é possível perder ao se fazer uma determinada escolha. Não devemos crer em algo sem fundamento. Como dito no começo do texto, possibilidade não faz sentido. O medo de existir um inferno e afins não é um motivo válido, é crueldade aos que sofrem: aguentar o sofrimento lancinante no corpo físico e/ou na psique para não ser eventualmente punido depois, que horror! E a ideia de que sofrimento purifica a alma é pura metafísica, só o primeiro é um mal de fato, o que você passa hoje. Ademais, seria como aceitar servir um ditador que coloca uma arma na sua cabeça (poupando os que simplesmente o aceitam), só que se trata de uma escravidão em vida para evitar a punição que você não sabe se existe. A propósito, como disse o personagem Ivan Karamázov de Dostoiévski, se for necessário usar o sofrimento de uma criancinha para construir as bases “harmônicas” do paraíso, eu também passo meu ticket. Um (possível) Ser justo e de amor não agiria assim... A sua vida é aqui, agora. É tudo o que realmente sabemos que temos. O resto são apostas sem base (não tome experiências de terceiros para se justificar). É você que deve decidir, só você está e estará na sua pele. Desejo toda força a você, lute, persista, viva pelo que você acredita e ama, “tente outra vez” sim, como diz a bela canção do Raul Seixas, mas não se perturbe ainda mais com esses mitos, se eventualmente não ver outra saída. Considere o que nos diz o filósofo do martelo: "a fé não remove montanhas, ao contrário, as coloca muitas vezes onde não tem". (NIETZSCHE, F. O Anticristo. LI). Claro, lembre-se que sempre há um novo dia, que as coisas mudam, que o tempo passa, mas só você pode de fato decidir se vale a pena continuar. Todos nós, mais cedo ou mais tarde, sofrendo ou não, não estaremos aqui, a decisão é sua, não há porquê acreditar que sua hora está escrita sem mais.

       Em tempo, a vida pode ser bela mesmo em meio às dificuldades. Não existe um padrão, a “obra de arte” é você que faz. Tomo como exemplo o famoso físico Stephen Hawking (recomendo o filme: “A Teoria de Tudo”, que conta de maneira fascinante a história dele), poucos de nós não desejariam a morte em sua pele, um jovem de vinte e poucos anos, cheio de planos e talento, se ver definhar em pouquíssimo tempo, com os piores prognósticos médicos e expectativa de vida de dois anos. Mesmo numa cadeira de rodas e sem poder falar, ele seguiu em frente, contrariou as expectativas, casou, teve filhos, concluiu sua tese e se tornou um dos maiores cientistas do nosso tempo, ativo e trabalhando até hoje. Mas você também pode seguir em frente mesmo sem grandes feitos e pensar como o personagem Brás Cubas de Machado de Assis, que nos escreve após a sua morte: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (MACHADO DE ASSIS. Memórias Póstumas de Brás Cubas. § CLX). Nessa escolha, não cabe juízo de valores. Somos miseráveis, inevitavelmente, mas isso não nos impede de viver. Por isso, reitero: só você pode “colocar na balança” e decidir, só você pode analisar e concluir se vale a pena, independente de padrões e modelos, a vida é sua. Não estou dizendo que não podemos nos espelhar em grandes homens (por exemplo, a persistência de Nelson Mandela certamente pode ser influência para muitos), afinal, compartilhamos a “condição humana”, mas sim que não podemos ignorar a particularidade de cada um, o que faz com que todo ser seja único. Finalmente, em meio a sua própria reflexão, tomando seus conceitos, vivência, e exemplos para julgar, “você aprende que realmente pode suportar, que realmente é forte, que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais”. (WILLIAM SHAKESPEARE. O Menestrel). O seu limite pode ir além do que aparenta, como incentiva Shakespeare, é possível se surpreender, mas tenha a consciência livre para julgar, pois você é o melhor juiz da sua vida.

3 comentários:

  1. Eu pessoalmente acho que o mundo tem sentido se você quiser que ele tenha... Ai que está, o sentido é a gente que decide, pode ser a coisa mais banal para a maioria ou não, pode ser um mero "se divertir quando der".
    Ou você pode sobreviver, sim, como os budistas, "viver sem um sentido", suprimir os desejos.
    A verdade é que a indagação pelo próprio fato que se indaga, não importa! Procure não sofrer com a falta de sentido do mundo. :)
    Eu gosto de pensar que não temos de ter o sentido para viver, vivemos para ter sentido... O sentido é produto da vida vivida...

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  2. Fui amigo do Helder.
    Gostaria de falar contigo, entre em contato por favor
    robissonhotelsete@gmail.com

    abraços

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