quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Matrix Resurrections (IV) – Decepção!

Contém SPOILER!

Certas coisas é melhor ficar no passado, Matrix é uma delas. Antes do novo filme, Matrix Resurrections, eu não diria isso; só por ser Matrix, tinha tudo para ser um filme bom. Estava super empolgado para ver o aguardado episódio da famosa franquia, que veio depois de todos esses anos, mas, ao ver a merda que fizeram, a afirmação inicial é uma convicção.

A decepção já começa no elenco, atores substitutos para os personagens Morpheus e Smith – se a estória fosse criativa o bastante para justificar isso, usando o passar dos anos e tal, tudo bem, mas nem de longe é! A propósito, os atores novos são horríveis. Depois continua de forma acelerada, ao misturar um monte de elementos, ao fazer piadas fracas, a ter cenas a lá The Walking Dead, Neo dando hadouken e socando carros como o incrível Hulk, a várias vezes enxertar do nada críticas ao machismo (voltarei nesse ponto mais à frente) e termina com um final simplório e clichê. Ah! Já ia me esquecendo, tem a pior cena pós créditos que o cinema já fez! Destoa do filme como uma propaganda antes do vídeo no YouTube. Fazer alguém esperar todos os créditos para ver aquilo, deveria ser crime!

O filme é um grande déjà-vu tosco, “releituras” das cenas dos filmes anteriores a todo momento. E não estou falando das cenas dos filmes anteriores que literalmente entram na tela (isso não é necessariamente ruim), mas das recriações feitas, eles refilmaram todas as cenas clássicas, por exemplo: “siga o coelho branco”, o toque no espelho, a escolha das pílulas, o giro nas paredes e teto enquanto alguém atira, o Morpheus no sofá conversando com o Neo, a sala toda branca, Morpheus e Neo lutando Kung-fu, Trinity guiando loucamente a moto com um garupa (dessa vez, o próprio Neo), os socos do Smith na barriga do Neo, etc., não preciso nem falar do segurando as balas (metade do filme só nisso!), do esquivar deitando para trás e do Neo voando, né? Tudo isso regravado. Poderia ter algo do tipo – se bem feito e proporcional, fica até bacana , mas é exagerado. Não tem como ser mais previsível. Acaba por ser, no mais das vezes, um brincar ridículo e sem propósito com os elementos dos filmes anteriores. O pouco do “novo” que aparece é uma imitação barata do que ficou batido em filmes e séries de apocalipse zumbi. Reproduziu o que é mais ruim neles. Há tanta explosão, porrada e tiro, que o próprio filme, em suas piadas mal feitas, chega a brincar com isso: um personagem diz que prefere a ação o tempo todo do que a inteligência do jogo.

Antes de tudo começar a explodir, o filme fica a primeira meia hora sem sentido, nada com nada e sem acontecer muita coisa, até o Neo (parecendo mais John Wick depois de fumar meio quilo de maconha com esterco) acordar novamente fora da Matrix – sim, tem a mesma cena, Neo está involuntariamente de volta na Matrix e levanta daquela mesma bacia de gosma, cheio de plugs, ao despertar. Faz parte da trama e ficou massa (coisa rara no filme) vendo ele revivendo aquela situação, agora com muitas rugas na cara, rs. Não vou me estender muito contando a estória, não é o propósito aqui fazer um resumo de todo o filme, foquemos no que é relevante à crítica, ora feita. A pergunta principal do terceiro filme (Matrix Revolutions) é simplesmente ignorada, qual seja, o que fez Neo ter poderes no mundo real, fora da Matrix? Seria a “realidade” outra Matrix? Ele é mesmo um ser sobrenatural? O filme não menciona absolutamente nada disso, nem ao menos reforça o mistério do acontecimento inusitado. E já adianto, Neo deixa de ser “o escolhido”; continue a leitura e você vai entender.

As máquinas ressuscitaram Neo e Trinity – sim, deram esse poder a elas, inclusive elas deram novos olhos a Neo –, porque viram que eles dois próximos um do outro era positivo para a Matrix, desde que não unidos. Uma explicação que careceu de mais elementos, diga-se de passagem. Aí as cagadas começam a se agigantar. Neo quer retornar à Matrix para tirar Trinity de lá, mas ela não lembra dele, apenas diz parecer ter vivido a estória que ele escreveu para um jogo de vídeo-game (a Matrix colocou Neo de volta no mundo virtual como um criador de estória para games, onde ele escreveu tudo o que viveu nos outros filmes, como se fosse ficção). Trinity está casada e com dois filhos. Mas mesmo assim ela resolve largar a família  literalmente mete a porrada no marido , para ir com um desconhecido que ela teve um sonho! Verossímil demais, né? rs.

Eu não vejo problema algum em misturar arte com crítica política e social, muito pelo contrário, elas podem ser ferramentas de transformação, sim. Mas nem toda arte precisa disso. Matrix não é uma criação nova, estamos falando do quarto filme de uma franquia! Sem contar as várias produções em outras mídias. Totalmente fora de lugar o que fizeram. O machismo é uma coisa podre, tem que acabar, tem que ser combatido e filmes podem educar, mas daí chegar ao ponto de mudar os personagens? A lógica do filme? Atropelando tudo? Trinity não pode ser mais salva por Neo, ela também passa a ser “a escolhida”! rs. Fizeram ela inclusive voar para salvar ele! Puta merda! Se o Neo não é o escolhido, se não é mais o único que tem poderes especiais, tudo o que foi feito nos outros filmes perde o sentido! Perde inclusive o sentido o Smith ser o alter ego "fodão" dele, ponto reafirmado no filme. Agora Trinity e Neo dando as mãos – louvor deveras patológico ao amor de “almas gêmeas” – tudo se resolve, explode todos os inimigos ao redor. Na cena, próximo ao final, do "The Walking Dead", eles cercados de zilhões de bots (malware traduzido literalmente por zumbi), tem novamente um ataque ao machismo, Trinity se livrando da tutela do marido e se empoderando na fala. E, novamente, na última cena, o Analista diz que Neo deveria controlar ela e antes diz que já foi mais fácil controlar as mulheres, e ela arranca a mandíbula dele com um soco. Inclusive, na fotografia dessa cena, Neo está sempre um passo atrás dela. Todos os cargos de comando no filme são exercidos por mulheres também. Mesmo se fosse um filme começando do zero, seria desproporcionalmente forçado, não condizendo com o retrato social que conhecemos; mas aí seria criação ficcional pura e está valendo. Enfim, esse é o tipo de coisa que dá munição para os que dizem que a defesa do feminismo é apenas em causa própria, já que Lana Wachowski é uma mulher trans e no primeiro filme ainda não tinha assumido o gênero feminino.

É evidente que a defesa do feminismo é algo racional, não precisa ser em causa própria. Eu mesmo sou defensor ferrenho do feminismo. Mas em tudo é preciso ter bom senso, se não, vira desespero banalizado; uma pauta importante vira chavão. Ninguém ouve o chato. Chato no sentido de falar o tempo todo a mesma coisa e fora de local, contexto e tempo; não chato no sentido de incomodar o status quo, isso é mais do que válido e necessário! Lembro de quando eu tinha uns 13 anos e me converti ao protestantismo, pegava a bobagem que a Bíblia dizia, para “pregar a tempo e fora de tempo”, e saía falando para todos e em todos os lugares, certamente afastando mais as pessoas do que as aproximando. Nada mais patético do que isso! Forçar essa pauta em Matrix IV é fazer um desfavor à causa; e uma afronta ao filme, agora pano de fundo mal feito. Eu sempre uso Matrix como exemplo nas minhas aulas de Teoria do Conhecimento, ao falar que tudo pode ser fruto da nossa própria mente (solipsismo), do sonho cartesiano, da Caverna de Platão e afins. Já fazia a seguinte ressalva: “o primeiro filme é uma obra-prima, tem tudo isso nele, os outros dois são bons, mas focados mais na ação”; agora vou ter que acrescentar: “e esqueçam da existência do quarto filme!”.