quarta-feira, 28 de julho de 2010

Paranóia contemporânea


Corro apressado, tentando evitar me molhar, tentando escapar. Tudo em vão; as nuvens negras que deixaram a noite em densas trevas descarregam tudo, como se estivessem com muita raiva. Tempestade tão forte que as gotas pareciam quicar de volta ao baterem no chão. Não adiantava mais correr ou andar rápido, como diz o antigo ditado que aprendi com a minha avó, “o que é um pingo pra quem está molhado”; no meu caso já estava ensopado.
Todos os dias faço esse mesmo percurso. Não é uma caminhada muito longa, desço do metrô, próximo onde mora meus avôs, e ando alguns minutos até chegar em casa. Porém, nesse dia as coisas estavam estranhas, o caminho mais longo, os passos mais lentos e pesados, e ainda toda aquela chuva; mas isso perdeu todo o significado quando o vi.
Tudo ao meu redor sumira, de repente não percebia mais nada a não ser aquele ser que vinha atrás de mim. Ele surgira do nada, como se tivesse nascido das trevas; à primeira vista foi como se aquilo fosse uma criança, é estranho, mas foi o que me pareceu, um vulto de criança.
Mas não estava muito longe de mim e logo se aproximou mais. Percebi que usava uma capa preta antiga, e umas botas também antigas. Vendo-o sobre meu ombro, agora mais de perto, não entendia o por quê me pareceu ser uma criança ao longe; agora parecia um homem estranho, pequeno e magro. Foi quando me lembrei que um famoso bandido acabara de fugir da prisão, só podia ser ele, ele era assim e diziam mesmo que estava por ali.
Ele se aproximou mais, apressei o passo também; percebi que tirava alguma coisa do paletó que refletia como metal, e a segurava com uma mão só, nesse momento ele estava de fato quase ao meu lado, pensei em correr, mas não adiantaria nada, ele já devia estar com a arma pronta, em punho.
Isso tudo aconteceu rápido, mas parecia uma eternidade. Coincidência nefasta, de repente a chuva já não estava tão forte mais, seria o momento ideal, e ele se dirigiu a mim dizendo com uma voz rouca:
- Calma ai...
Então me virei, como alguém que está prestes a levantar as mãos em sinal de rendição. Foi por pouco, pensei, estava a poucos metros de casa; mas agora não podia fazer mais nada.
Foi quando ele meteu a mão no capuz para tirá-lo, diziam que ele era extremamente frio e que gostava de olhar a sua vítima nos olhos; minhas mãos tremiam, não pude evitar, então...
Minha avó disse: - Aqui, pega, sua mãe esqueceu a bolsa com os documentos e telefone lá em casa. Como ela iria viajar? Menina esquecida, essa é sua mãe!
Isso mesmo, "ele" era a minha avó...

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Escrevi esse conto, apesar de usar o humor, para demonstrar como a nossa sociedade é escrava do medo. Situações corriqueiras, como o acontecido com o rapaz do meu conto, que parecem normais, mas não é. Situações que mostram na verdade quais são os frutos dessa imensa violência que nos assola, prisioneiros do pré-conceito gerado pelo temor, vítimas de um perigo sempre eminente e infelizmente real.
Não é fácil libertar as pessoas sem acabar com a violência que está sempre à porta, mas jamais é assim, com medo de tudo e de todos, que a sociedade merece e deve viver. Toda mudança começa com um primeiro passo.