domingo, 22 de março de 2020

Os invisíveis do Corona


     A cidade está fantasma. Clima de The Walking Dead, no Brasil, no mundo inteiro. Onde você está nesse exato momento? Se está lendo o texto, dificilmente você faz parte destes invisíveis. Vamos falar daquilo que a mídia não fala, chamar a atenção para os lugares obscuros dessa nossa sociedade doente, não apenas pelo Corona, mas pela indiferença humana.
     Você aí no seu lar aconchegante, navegando na internet, vendo filmes, lendo livros, escutando música, se distraindo com jogos e aproveitando mais da sua família (daqui a algum tempo dificilmente você vai aguentar estar com eles o tempo todo assim, ainda mais se a sua casa não for das maiores e com crianças por perto, mergulhadas no tédio, mas enfim, falar isso sem papas na língua chateia e seria outro assunto, eu sei), enquanto acompanham em uma mesa farta as notícias sobre o Corona, já pensou a situação que está um vendedor ambulante com a família dele, às vezes várias crianças em um, dois cômodos, sem renda alguma e sem ter para quem vender nesse exato momento?    


     Já pensou a situação das prostitutas? Aqui em Belo Horizonte tem uma zona de prostituição enorme na região da rodoviária que deixa a coisa ainda mais visível, quem conhece terá uma imagem exata da situação que estou falando. Mulheres sem qualquer fonte de renda, que mal conseguem o que precisam para viver, algumas custam pagar o aluguel dos quartos, fazem vários programas só para isso, quase todas sustentando famílias inteiras. Imagine a situação delas, chega a milhares só lá, sem clientes, sem qualquer outra fonte de renda, grande parte de outras cidades, sem parentes por perto, sem qualquer auxílio governamental.
     Pense agora nos moradores de rua, ou nas “pessoas em situação de rua”, como queiram os eufemismos que nada resolvem. Moro, pelo decreto, vai os mandar para “casa”? Só se for para sua casa, seu Moro! Aquele que recebe auxílio moradia tendo moradia faraônica, como todos togados. Que nojo! Que indignação! Voltando, imagine só comigo agora a condição deles, não vão ter se quer a quem pedir, até as latas de lixo, bandeja de comer para muitos, estarão vazias. Dei uma volta de bike pela cidade, quantos e quantos eu vi fuçando o lixo, como ratos famintos. Você se atentou para isso? E os guardadores/lavadores de carros na rua, e quem faz malabares ou vende no sinal, com ninguém abrindo as janelas, vão viver de que? Esses já são excluídos do olhar da maioria né, mas agora pode ser que finalmente comecem a aparecer, e certamente não vai ser para acenar sorrindo. Ah! E como são muitos!
     Todos os trabalhadores autônomos estão em situação complicada, cabelereiros, barbeiros, pedreiros, vendedores, diaristas, professores particulares, advogados, seja qualificado ou não, certamente enfrentarão problemas. Mas você olha para muitos outros e não os enxerga de verdade, é com o foco nesses que escrevo esse texto. “Olha, mas não vê”, como diz o livro da capa preta que você acredita, ou finge que acredita, já que não faz nada pelos desfavorecidos, como um certo cabeludo barbudo “comunista” que foi assassinado ensinou. Realmente já refletiu sobre o que está acontecendo nos supermercados? Depois que você coloca as compras no carro, aquelas pessoas não desaparecem. Olha o quanto os donos desses locais estão lucrando, e para isso usando literalmente a vida alheia, funcionários em risco, perdendo inclusive a folga semanal, com a saúde a deus dará, sem se quer usar uma máscara, tudo para não deixar a fila parar. Rimou, mas não tem graça. Eu ouvi um áudio de um verme dono de supermercado falando para seus funcionários que quem não quiser trabalhar é só “escrever a carta de demissão”, como se as pessoas pudessem escolher ficar sem o emprego. Imaginem só isso, não bastam estar lá se arriscando, o verme ainda mostra o chicote! 

     E o que ficará desse lucro todo para aqueles que mais ralam e produzem a riqueza, que estão tendo contato com milhares de pessoas por dia, certamente algumas contaminadas de Corona, arriscando pegar e passar para os seus, chegando em casa extenuados, mal deitam e levantam para ser escravizados no dia seguinte, hein? Nada. Nem um centavo. Tudo vai para o bolso do porco capitalista que as ameaça de demissão, assistindo tudo de longe, a uma distância segura, claro, longe do Corona, no mais das vezes deitado em casa, muitos nem no Brasil moram. O que vou falar agora não é para todos, mas para quem a carapuça servir: aonde você pretende enfiar aquele discurso de “meritocracia”? Queria saber, sério, queria ao menos olhar para você lendo essas palavras; o que você vai fazer com o seu cinismo, com a sua hipocrisia, com a sua opinião patética?
     Nas farmácias a coisa ainda é pior, pois o fluxo de clientes e só o porco dono do local lucrando não são diferentes, mas o risco aumenta, pois o número de doentes, por razões óbvias, é maior. Mas estão ganhando ao menos pela inegável insalubridade desses tempos? Não. Ao contrário, só estão ganhando mais trabalho, mais desgaste, físico e mental. E ainda tendo seus direitos liquidados devido a essa reforma trabalhista assassina que está vigorando.
     E os entregadores de comida por aplicativo, nunca trabalharam tanto, e estão ganhando mais por se arriscarem? É claro que não. As empresas continuam se quer sem bancar, nem mesmo parcialmente, um seguro médico. Poderia detalhar para chamar sua atenção para vários outros invisíveis, mas o texto se alongaria muito, por isso apenas citarei rapidamente: catadores de latinha, sem festas e sem pessoas bebendo, estão rodando o dia inteiro e não estão conseguindo o mínimo para se manter; caminhoneiros que transportam isso tudo; frentistas de postos de gasolina para atender os últimos e a população em geral, que está evitando o transporte público; por falar nisso, motoristas que não podem parar, esses além de dirigir o dia inteiro, estão expostos; lixeiros que, segundo o bosta Boris Casoy, nem se quer podem desejar feliz Natal – “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”, disse o imbecil que não sobreviveria um dia no lugar desses vitais trabalhadores, em 31 de dezembro de 2009; relembrar é viver, né –,
continuam normalmente, insalubres e correndo atrás de caminhão, algo absurdo naturalizado; como assim lixeiro tem que trabalhar correndo? Já pensou seriamente nessa loucura, nesse abuso? É fácil resolver isso, bastam mais funcionários. Mas para que, né? Dizem aqueles que fazem as regras. Esses últimos nunca serão afetados. E continuam normalmente sendo explorados aqueles que plantam e que colhem nossa comida, os mantenedores de serviços básicos, como água, luz e gás, os funcionários de padaria (a daqui perto de casa passou a estar aberta 24 horas, deve ter funcionário extrapolando e muito uma jornada minimamente aceitável), cargos baixos na rede hospitalar, que de fato são os que mantem a estrutura de atendimento funcionando, o pessoal do metrô e todos esses e outros juntos ao se transportarem, de casa (quase sempre longe dos grandes centros) para o trabalho e vice-versa, correndo mais risco.
     Se você está em casa agora, é exatamente porque essas pessoas não estão. São imprescindíveis, assim como deveria ser imprescindível o máximo de cuidado com a saúde delas. Elas precisam se matar para ter o que comer? Enquanto sociedade, vamos continuar aceitando isso como normal? Quase todas ganhando salário mínimo, e olhe lá ainda! Não existe justiça em meio à abissal desigualdade. Mas o grosso da população, que dependem dessas pessoas para tudo, ainda as desprezam, as tratam como seres inferiores, “cidadãos de segunda classe”. Mas é um desprezo cênico, não sobrevivem um segundo sem elas, mentem para si mesmos. Agora com essa situação do Coronavírus as coisas podem aparecer como nunca vivemos, ao menos nas últimas décadas. Ao atiçar o formigueiro, a formiga age. Se essa situação se estender, o caos estará instalado, e só aí se perceberá como é trágica, com consequências terríveis, uma sociedade que coloca grande parte de seus indivíduos tendo nada a perder.

     O Corona é uma desgraça, e por atingir ricos igualmente ou mais (num primeiro momento ao menos, já que são eles que viajam com frequência), é a única coisa que se fala. Morrem-se todos os anos dezenas de milhares de pessoas decorrentes da falta de saneamento básico no Brasil, boa parte crianças, mortes evitáveis, mas ninguém faz nada, a mídia não dá um pio se quer. Não restam dúvidas que é uma situação muito séria essa pandemia, é preciso falar com as pessoas e repetir para elas tomarem cuidados (sobretudo reforçar a higiene, não ficar levando as mãos ao rosto, evitar aglomerações e manter uma certa distância uns dos outros, ainda mais das sintomáticas; já a quarentena indiscriminada para todos, salvo em torno do pico de contágio, não é indicada, não é possível ao longo do tempo até se ter uma vacina – muitos não têm pensado nisso, estamos falando, no melhor dos cenários, de um ano e meio), o Governo deve ampliar muito os testes, abrigar contaminados que não têm como se isolar, controlar fronteiras e estradas, obviamente fechar escolas e universidades, não autorizar eventos que envolvam agrupamento, impedir serviços não essenciais e afins, mas a mídia não para um segundo de falar nisso, é 24 horas por dia, no mais das vezes com informações rasas e matérias bobas; se dá pleno palanque para uma enquanto se naturaliza e ignora completamente outra, e outras, tão sérias quanto ou mais, mas, para ficar com esse exemplo entre tantos, falta de saneamento só atinge miserável, né? Se sem tratamento a letalidade desse vírus fosse mais alta, dizimaria totalmente os pobres, mas isso não vai acontecer, então será hora de tirar algum proveito, algum aprendizado do caos, e sim, agir enquanto classe. Renda mínima e/ou assistência digna para essas pessoas em situação de risco é o mínimo que uma sociedade racional e civilizada deve ter. E já infinitamente melhores salários para esses trabalhadores de base! É preciso realizar distribuição de renda, taxar grandes fortunas. Para que serve um governo que não cuida dos vulneráveis sociais, das pessoas? Sendo esse o caso, o que é uma constatação, o que os pobres têm em jogo? Se tudo tem um lado bom, o desse momento é o recolhimento dos cacos. A diferença dos favorecidos salta agredindo aos olhos. É hora dos silenciados exigirem a sua vez. A jaula começa a ser quebrada, ninguém vai esperar morrer de fome, sociedade feita para o benefício de 1% da população é uma doença fadada ao fim. Já não será possível esconder isso mais. Viva os invisíveis!