quinta-feira, 22 de abril de 2021

Adeus, tio Haroldo

    Há sempre momentos muito duros e injustos na vida. Hoje (21/04/21) é um desses: o falecimento do meu tio, Haroldo.

    Um homem muito forte, infelizmente uma das milhares de vítimas brasileiras da Covid-19. Tudo foi tão rápido, há poucas semanas ele estava super saudável, igual a um touro, carregando latas com entulho para arrumar algo em sua casa; cheio de planos. Tinha tomado a primeira dose da vacina. Não dá para acreditar que ele não está mais aqui. É muito triste. Hoje chorei...

    Ele era meu amigo. Por causa de uma briga que não era minha e dele, acabamos parando de conversar. Cheguei a cumprimentá-lo duas vezes (a segunda de forma sutil, um tanto quanto "pra dentro") alguns dias depois do ocorrido, ele não me respondeu. Arrependo muito de não ter insistido, explicado as coisas, pois ele era, sem sombra de dúvida, uma pessoa muito boa! Tudo aconteceu quando minha avó faleceu, todos nós muito chateados, abalados. Foi uma discussão em que agiram sem pensar, um turbilhão de nervosismo, sentimentos à flor da pele; mesmo assim, as ofensas não foram das mais graves, se acertaram depois. Não errei com ele, eu não estava diretamente envolvido, minha intenção na ocasião foi fazer algo para que resolvessem sem violência física – o que felizmente aconteceu; poderia ter tido um desfecho bem diferente –, ao mesmo tempo não deixando passar como se nada tivesse acontecido, buscando a devida justiça, sem perder a cabeça, apesar de toda a irritação que um outro envolvido causou a mim e à minha mãe, mas o tio Haroldo não interpretou assim... No mesmo dia não levaram a diante o problema. Desculparam-se uns com os outros nos dias que se seguiram. Todo mundo erra, ele errou na situação, reconheceu o erro. Os outros envolvidos, que também se excederam, disseram que poderiam ter resolvido tudo sem aquele confronto inútil. Mas ele ficou chateado por uns tempos comigo, por eu ter tomado partido. Não tinha raiva de mim e nem eu dele, como eu disse, nem mesmo era uma briga entre nós dois, mas acostumamos com essa situação de não conversar. E, cada um no seu mundo, com aquela ocasião nada propriamente esclarecida ou conversada entre nós, sem os antigos encontros na casa da minha avó, o tempo foi passando, petrificando esse estado, essa situação absurda. Não era mais uma questão de orgulho ou de rancor, foi (tristemente) se naturalizando. Deixamos essa condição horrível virar algo normal.

    Vivíamos no mesmo lote, deixado pelo meu avô, onde seus filhos construíram casas. Meu pai é irmão dele. Apesar de morar ao lado, na infância não tínhamos muito contato, ele trabalhava muito, era motorista de ônibus – a propósito, ele dirigia muito bem e sempre fazia favores dirigindo carros que não eram dele, sempre muito prestativo para seus parentes. Na adolescência, nos encontrávamos na casa de minha avó, em alguns almoços comemorativos. Jogávamos peteca na rua, algumas vezes ele jogou com a gente. Mas nos aproximamos de verdade depois que minha tia, Maria do Carmo, esposa dele, uma pessoa incrível, infelizmente faleceu. Ele ficou um bom tempo abatido; não era para menos. Depois – nessa época ele já estava aposentado –, começou a correr atrás de novas coisas, novas atividades, novos trabalhos, sobretudo, para distrair. Lembro que ele arrumou uma bicicleta de três rodas, com ampla garupa, para poder vender café e bolo. Não deu muito certo, mas dei umas pedaladas nela para falar com ele qual era a minha impressão.

    Lembro que ele chegou a ter um pinscher marrom, o Spock, que aliviou muito a mente dele. Era um cachorrinho danado! Super inteligente. Enfrentava todo mundo, sem perceber seu tamanho. Ele jogava uma bolinha para o Spock, que sempre a buscava com uma destreza incrível. Nessa mesma época ele começou a realizar atividades físicas, perdeu a barriga que tinha, ficou muito forte. E cada vez a gente conversa mais. Tio Haroldo virou amigo dos meus amigos, inclusive.

    Quando comprei minha TV, isso em 2011, lembro que o chamei para ver a imagem dela. Ele gostou demais! Disse que compraria uma igual em breve e começou a se interessar por tecnologia, internet, computador. Pouco tempo depois ele comprou a TV e um notebook, super disposto a aprender a usar, a poder ver os filmes e os vídeos do YouTube. Eu ensinei ele a usar a internet, a ver os vídeos, criar um e-mail, um perfil no Facebook e etc. Ele super interessado, aprendia muito fácil. Na época eu ainda não sabia baixar filmes, eu e ele queríamos muito aprender. Lembro que fomos na casa do nosso ex-vizinho, Tales, uma pessoa muito gente boa, que sempre sacou tudo de informática, para vermos como funcionava. Como se fosse hoje, recordo do dia: eu, ele, meu irmão e Tales assistimos "O Lobisomem", baixado na hora. Tales ainda tinha um projetor, imagem grande, fantástica. Foi muito bacana.

    Depois, ele se empolgou muito com artes marciais. Eu tinha descoberto uns canais no YouTube sobre defesa pessoal, várias técnicas práticas e bem ilustrativas. Comentei com ele, que logo começou a assistir também. Começou a frequentar academias de luta. Vez ou outra me mostrava algum golpe que tinha aprendido. Ele tinha os braços muito fortes, chegava a doer quando ele ia demonstrar, rs... Sempre muito atento, sempre explicando muito bem cada passo. Essa era uma característica bem marcante dele: explicava tudo com muita clareza, repetida e pausadamente, sempre terminando o encontro com um "então fica assim, até".

    Mais tarde, o neto dele, David, que ele criou como um filho, começou a ficar maior, de forma que o tio Haroldo gastava boa parte do seu tempo com ele. E eu estava ficando cada vez mais tempo na faculdade, o que diminuiu um pouco nossas trocas. Mas quando nos encontrávamos, sempre tínhamos assuntos e dicas para dar um ao outro.

    Não posso deixar de registrar aqui como ele foi dedicado à sua família. Em tempo e dinheiro. Gastou praticamente todas as suas economias para ampliar a sua casa, para dar mais conforto aos seus filhos. Criou quatro: Michele, Vivi, Haroldinho e Fafá. E estava ajudando a criar seus netos. (Meus mais profundos sentimentos, primos queridos!). Era uma pessoa muito determinada, há décadas parou de beber e de fumar, o que trouxe muita paz na vida dele e da família. Também é obrigatório mencionar que ele tinha um carinho muito grande com a minha avó, sempre ia lá almoçar com ela. Mesmo com uma ou outra desavença passageira, era querido pelos seus quatro irmãos (olhem só esta foto rara da família que achei em um álbum antigo aqui – pena que o fotógrafo cortou a cabeça do meu pai e a tia Jacira não está nela; essa moça não é ela).

    Infelizmente nossa amizade quebrou após o falecimento da minha avó, depois daquela briga que aconteceu entre ele e outros familiares, que eu mencionei no começo. Novamente, nem era um problema entre eu e ele. Não era para ter terminado assim. Nada mais desproporcional do que não conversamos por causa daquela situação. Mas foi como as coisas vieram se arrastando até aqui, inacreditáveis cinco anos, a gente se vendo pouco, de certa forma se evitando aqui ou ali, sem porquê. Sem qualquer motivo que mereça o nome para ser assim. A última vez que o vi, que nunca imaginei que seria a última, foi nesse lamentável contexto – ao lembrar dói, é como estar lá, não tem um mês: entramos ao mesmo tempo num corredor do lote, nossos olhos se cruzaram (ele olhava por cima dos óculos, característica tão marcante dele), mesmo sem se falar, havia um respeito e nenhum embate, ele estava com uma lata enorme de entulho no ombro, eu voltei, dei passagem para ele. Que pena ter essa sido a última vez...

    Eu poderia tentar transferir a culpa da situação que nos afastou para as pessoas diretamente envolvidas naquela briga que não era minha, ou mesmo para ele próprio (apesar de entender plenamente que ele estava ainda chateado quando o cumprimentei), mas, como Sartre, acredito que "o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com aquilo que fizeram de nós" (Jean-Paul Sartre). O que está ao redor inegavelmente tem peso, mas podemos escolher. Fui levado à uma situação, mas tomei minhas próprias decisões. Não arrependo da posição que tomei naquele fatídico dia, mas do que se seguiu. Primeiro, um orgulho bobo me impediu de insistir. Por não ter atacado ninguém, por não ser pivô daquela briga familiar, não busquei efetivamente a reconciliação, mas tenho certeza que bastaria uma simples explicação da minha posição para que eu e o tio Haroldo tivéssemos voltado como antes. Ele tinha muita personalidade, mas não guardava mágoas. Nem caberiam, de fato. Se eu tivesse falado qualquer coisa com ele depois que a poeira abaixou, seria diferente. Depois, fui deixando esse afastamento se concretizar. Minhas escolhas poderiam ter sido outras durante todo esse tempo posterior. Tio Haroldo era uma pessoa boa e nada de grave aconteceu para ter esse rumo. Como lamento ter deixado ficar assim... Mas agora não tem volta, que essa tristeza seja, ao menos, um aprendizado para mim e para todos que lerem esse texto. Muitas das situações que levamos, não tem sentido de ser.

    Sempre terei saudades das nossas trocas, tio. Do seu jeito de ser. Seguimos o seu exemplo de dedicação para com a família e disposição para a vida. Você era uma pessoa fora de série! Foi um lutador até o fim. Queria ter a chance de dizer isso para o senhor, mas agora só posso escrever aqui. Que fique como minha homenagem, e como a nossa reconciliação que, tenho certeza, apenas por falta de iniciativa, não veio. Se houver algo depois dessa vida, é a primeira coisa que falarei para o senhor. Obrigado por ter feito parte da minha vida!